O Pr. Gilson Soares dos Santos é casado com a Missionária Selma Santos, tendo três filhos: Micaelle, Álef e Michelle. É servo do Senhor Jesus Cristo, chamado com santa vocação. Bacharel em Teologia pelo STEC (Seminário Teológico Evangélico Congregacional), Campina Grande/PB; Graduado em Filosofia pela UEPB (Universidade Estadual da Paraíba); Pós-Graduando em Teologia Bíblica pelo CPAJ/Mackenzie (Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper). Professor de Filosofia e Teologia Sistemática no STEC. Professor de Teologia Sistemática no STEMES, em Campina Grande - Paraíba. Pastor do Quadro de Ministros da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil (AIECB). Pastoreou a Igreja Evangélica Congregacional de Cuité/PB, durante 15 anos (1993-2008). Atualmente é Pastor Titular da Igreja Evangélica Congregacional em Areia - Paraíba.

7 de abril de 2012

Um Cântico na Agonia


UM CÂNTICO NA AGONIA

O que você faria hoje, se soubesse que amanhã se encontraria preso a mais terrível e indescritível crise existencial?

Se amanhã você se desse conta de que seu melhor e mais íntimo amigo lhe houvesse faltado ao dever humano e fraternal de solidariedade?

O que você faria se, de repente, aquela pessoa de quem você nem de longe desconfiara, na qual você tanto investiu e que tanto usufruiu de sua cultura, seus afetos, inclinações e bens maiores o traísse?

O que você faria se a religião na qual você foi criado, em meio a qual foi inspirado, dentro da qual foi instruído, subitamente, estabelecesse uma penalidade contra você?

Como você reagiria se, de súbito, se visse escarnecido, vilipendiado, com a honra enxovalhada, a dignidade exposta a uma situação de zombaria, motejo, galhofa e ironia?

O que faria se fosse alvo de grave violência física, de um estupro, por exemplo, ou de uma surra absurda?

Qual seria a sua atitude se você tivesse certeza absoluta do que lhe aconteceria nos próximos dias?

Houve um dia, na vida de Jesus, quando, olhando adiante, ele só conseguia ver coisas absurdas e semelhantes a essas a que acabo de me referir.

Seu dia seguinte seria o dia do Getsêmani; dia da depressão, da agonia; dia do encaramujar da alma; dia da vertiginosa descida à região mais abissal; dia do choro, gemido, solidão profunda.

O dia seguinte seria aquele no qual faltaria a solidariedade dos amigos. Ele gemeria, choraria pediria, reclamaria; solicitaria apoio, companhia, mas os amigos estariam dormindo. Voltaria a eles e em vão questionaria: “Não pudestes vigiar comigo? Não pudestes investir em mim sequer alguns minutos? Não conseguistes vencer o sono? Será que a minha dor é menos importante que o conforto e o sossego? Simão, tu dormes? Não pudeste vigiar comigo uma hora? (Marcos 14:37).

O dia seguinte também foi dia de traição, dia no qual Judas Iscariotes – discípulo, apóstolo, amigo, amado – o troca por dinheiro. Judas que fora investido de autoridade, aquele a quem se descortina o reino de Deus, a quem é permitido sonhar com os que sonham na intervenção de Deus na história; alguém aquinhoado com poder divino para realizar curas, prodígios, expulsão de demônios; aquele que vivenciara realidades concretas da chegada e da demonstração do Reino. É justamente ele que, em função de um bom negócio, trai a amizade; é esse Judas que beija e apunhala. É ele que dá um susto – não um susto no coração de quem não sabia o que ocorreria, mas um susto naquele que, mesmo ciente do que iria suceder, reserva-se ainda assim o direito de enfrentar cada momento da vida como cada momento da vida, com seus temores, sonhos e ambiguidades.

O dia seguinte é o dia no qual a religião judaica – segundo a qual foi criado, na qual aprendeu a ler (porque naqueles dias aprendia-se a ler nas escolas rabínicas, lendo a Torá, ou Escrituras), sendo instruído desde a mais tenra infância – após o julgamento, o acusa de herético, não recebe sua mensagem, rejeita sua proposta, considera-o demoníaco, expurga-o.

O dia seguinte é o dia da negação, negação de um dos melhores amigos, amigo que diante de uma situação pública afirma jamais tê-lo conhecido, não ter com ele a menor relação, não guardar a lembrança de nenhum encontro; não haver história entre eles, hipótese alguma de cumplicidade. Amigo que declara: “Não sei quem é esse homem; jamais o vi, nunca lhe ouvi o nome; tampouco andei com ele.” Amigo que nega a fraternidade, o compromisso, a paixão e o sonho comum.

O dia seguinte seria dia de preterição, de troca: “Que preferes, a Jesus, chamado Cristo, ou ao ladrão?”. Seria dia no qual o poder público faria opção pelo corrupto, em vez do justo; pela devassidão, e não pela integridade. Seria dia no qual os sistemas e a máquina governamental, por questões políticas, entregariam o inocente para ser condenado e libertariam – com todas as condições de libertação e seus privilégios  o assassino.

Dia, pois, de ser trocado de maneira vil; de ser escarnecido – soldados lhe poriam uma coroa de espinhos na cabeça para brincar com a sua realeza (realeza, sim, mas de dor). Colocar-lhe-iam na mão um caniço quebrável, como a dizer que o seu cetro é o cetro da fraqueza. Vesti-lo-iam com um manto aparatoso, para significar que tipo de rei era ele: rei-momo; rei-palhaço; rei do festival; debochariam dele expondo-o a cenas ridículas. Para honrá-lo, cuspir-lhe-iam. A fim de declararem sua sapiência profética, fechar-lhe-iam os olhos para lhe perguntar:  “Quem foi que te bateu?”. Sarcasmo, ironia.

O dia seguinte é o dia da cruz. Dia da violação. Dia da profanação física. Dia da agressão. Dia de ser trespassado. Dia de ser objeto.

O que você faria, se soubesse que os três próximos dias da sua vida seriam dessa qualidade? O que você faria, se soubesse que o que o aguarda é a depressão, a facada, a traição, o agravo, a perfídia, a barganha, o julgamento, a exclusão da instituição, o desprezo, a rejeição, a falta de solidariedade e ingratidão dos que se afirmavam amigos?

O que você faria se nos próximos dias você perdesse o emprego, ou lhe roubassem a posição em favor do maior corrupto, de pessoas mais convenientes àquela posição?

O que faria você, se amanhã fosse o dia do escárnio, do desdém, da injúria, do descrédito, do enodoamento do seu nome, de sua imagem e do seu caráter?

O que você faria, se amanhã, ao entrar no táxi, fosse vítima de um ato sádico, um assalto pavoroso, um sequestro?

Ou fosse dia no qual seu marido chegasse bêbado a casa, e tomado pelo machismo arrebentasse seu rosto, esmurrasse-a, atirasse-a ao chão, enchendo-a de hematomas, ferindo-lhe os ouvidos com palavrões e impropérios?

Tenho certeza de que não estou sendo irreal, nem estou falando de coisas que não lhe digam respeito. Porque todos nós, de um modo ou de outro, corremos sempre o risco de estarmos na iminência de sofrer algo desse tipo.

Viver é correr o risco de tragédia. Estar vivo é estar assistindo à possibilidade de conflito, traição, preterimento, negação, fraude, injustiça, roubo, desonra, calúnia, violência, depressão .

Hoje, não sabemos o que nos pode acontecer amanhã ou depois. Mas o Cristo ao qual me refiro conhecia o futuro – se bem que não do ponto de vista de uma exacerbada onisciência, que lhe tirasse o direito e o privilégio de rir e de chorar, de alegrar-se ou de sofrer a cada instante, a ponto de a cada nova situação poder afirmar: “Eu já estava esperando que isso acontecesse...”

Porque o paradoxo da onisciência de Jesus é que ele sabe tudo, mas vive tudo o que lhe acontece como se ignorasse que lhe ocorreria.

É o mistério que só se explica em Deus: saber tudo, e, no entanto, viver tudo com a surpresa da chegada de cada coisa.

E qual a atitude de Jesus na véspera do tudo mal? Na véspera do trágico? Na véspera do tudo-nada? Marcos conta, no cap. 14, v.22 e 23 que, partindo o pão, ele disse: “Isto é o meu corpo”; e tomando o cálice, acrescenta: “Isto é o meu sangue” – prova de que estava plenamente consciente do que o aguardava. O v.26 diz mais: “Tendo cantado um hino, saíram para o Monte das Oliveiras”.

O que esperava por Jesus era o ser ele partido, rasgado, moído, ultrajado, usado.

No entanto, ele canta um hino! E que hino era esse? Era justamente o hino que o judeu cantava na Páscoa, o Salmo 115, que afirma o amparo de Deus; salmo que admoesta:

“Não confieis em ídolos. Têm boca e não falam; têm olhos e não vêem; têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram. Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta”.

Ele exorta a que se confie no Senhor, em quem há amparo, refúgio, conforto, segurança.

Parece ironia cantar um hino desses à véspera do que Cristo sabia ser a moenda da sua alma, o trilhar do seu corpo, o lacerar e escalpelar da sua carne. Sim, Jesus foi neste planeta o único homem que soube crer no que Paulo articularia teologicamente mais tarde:

“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8:28).

Qualquer um só faz arremedar essa prática, somente Jesus de Nazaré cantou antes da agonia; cantou louvores no gemido. E diga-se: em Cristo, o cantar, antes de tudo, equivale a cantar depois. Porque ele canta não antes da surpresa absoluta, mas sabendo o que está por vir. O que significa terminar a cruz em louvor.

O que estará a vida fazendo em nós? Que estará ela fazendo de nós? O que o chicotear, o deprimir, o esmagar, o humilhar, o tripudecer, o caluniar, o escarnecer, o decepcionar, o desacreditar, o roubar, o espatifar de ilusões estarão criando em nós? Será que os gestos, jeitos, modos, palavras e tudo mais que a vida nos negou, não estariam gerando em nosso ser uma alma desértica, um coração duro, frio, incapaz do amor, da dádiva, da troca, do sossego e da paz?

Será que não teria arrancado de nós a capacidade de sonhar, de crer, de renunciar e de ser grato? Ou ainda não teriam criado em nós uma mente inepta, paralisada ao fervor e à adoração?

Será que os fatos e as ocorrências do dia seguinte estão gerando em nós a idéia de que Deus tem o braço encolhido? Que ele é um Deus impotente, inoperante e alienado; um Deus-ídolo?

Ou será que, por sua graça, seremos capazes de enfrentar o que vier, chorando e gemendo com louvor, com gratidão, na certeza de que aquilo que dói em nós, magoa e fere fundo; aquilo que nos embaraça e tonteia pelo impacto; que nos surpreende, decepciona e assusta, de maneira nenhuma revela e retrata a inoperância e pouco-caso de Deus, que não traduz sua fuga ou omissão.

Ao contrário, espelha a certeza de que, por trás do que se pode chamar bueiro da dor, espasmo da decepção, negrume da solidão, haverá finalmente a estrada em direção ao único Pai – o único Amigo – e à única vitória e certeza. Certeza que nos capacita a viver apesar do desamor e abandono, da aflição da perda irrecuperável; apesar do nojo e horror do amigo traiçoeiro e traidor, do tédio da eterna criatividade vestida de pavão e corpo de gralha; enfim, apesar da tristeza de tanto que iria ser e nunca foi, ou parece ser e não é – nem nunca será. Cristo canta a ressurreição. Ele canta a intervenção, celebra a vitória antes dela.

Meu grande desejo é que, de alguma forma, o Espírito do Senhor nos ajude a cantar um hino e sair... Sair para lutar!

 Sair para batalhar pela felicidade, alegria e independência a que temos direito. Sair, enfim, para viver a própria vida!

Faça a vida a careta que fizer, use contra nós as armas que usar, empunhe em nossa direção as foices traiçoeiras e devastadoras que quiser. Pois, apoiados ao muro da esperança, em Deus, iremos de peito aberto contra todo choque e toda cilada, celebrando de antemão a vitória, a interferência e o amparo do Todo-Poderoso, em meio à agonia. Saia para glorificar o nome de Jesus, cantando antes, durante e depois.

OBSERVAÇÃO: O autor desse texto é Caio Fábio. A transcrição desse lindo texto para este blog não implica dizer que concordo totalmente com a maneira como Caio tem conduzido seu ministério atualmente.