UM CÂNTICO NA AGONIA
O que você faria hoje, se soubesse que amanhã
se encontraria preso a mais terrível e indescritível crise existencial?
Se amanhã você se desse conta de que seu
melhor e mais íntimo amigo lhe houvesse faltado ao dever humano e fraternal de
solidariedade?
O que você faria se, de repente, aquela
pessoa de quem você nem de longe desconfiara, na qual você tanto investiu e que
tanto usufruiu de sua cultura, seus afetos, inclinações e bens maiores o
traísse?
O que você faria se a religião na qual você
foi criado, em meio a qual foi inspirado, dentro da qual foi instruído,
subitamente, estabelecesse uma penalidade contra você?
Como você reagiria se, de súbito, se visse
escarnecido, vilipendiado, com a honra enxovalhada, a dignidade
exposta a uma situação de zombaria, motejo, galhofa e ironia?
O que faria se fosse alvo de grave violência
física, de um estupro, por exemplo, ou de uma surra absurda?
Qual seria a sua atitude se você tivesse
certeza absoluta do que lhe aconteceria nos próximos dias?
Houve um dia, na vida de Jesus, quando,
olhando adiante, ele só conseguia ver coisas absurdas e semelhantes a essas a
que acabo de me referir.
Seu dia seguinte seria o dia do Getsêmani;
dia da depressão, da agonia; dia do encaramujar da alma; dia da vertiginosa
descida à região mais abissal; dia do choro, gemido, solidão profunda.
O dia seguinte seria aquele no qual faltaria
a solidariedade dos amigos. Ele gemeria, choraria pediria, reclamaria;
solicitaria apoio, companhia, mas os amigos estariam dormindo. Voltaria a eles
e em vão questionaria: “Não pudestes vigiar comigo? Não pudestes investir em
mim sequer alguns minutos? Não conseguistes vencer o sono? Será que a minha dor
é menos importante que o conforto e o sossego? Simão, tu dormes? Não pudeste
vigiar comigo uma hora? (Marcos 14:37).
O dia seguinte também foi dia de traição, dia
no qual Judas Iscariotes – discípulo, apóstolo, amigo, amado – o troca por
dinheiro. Judas que fora investido de autoridade, aquele a quem se descortina o
reino de Deus, a quem é permitido sonhar com os que sonham na intervenção de
Deus na história; alguém aquinhoado com poder divino para realizar curas,
prodígios, expulsão de demônios; aquele que vivenciara realidades concretas da
chegada e da demonstração do Reino. É justamente ele que, em função de um bom
negócio, trai a amizade; é esse Judas que beija e apunhala. É ele que dá um
susto – não um susto no coração de quem não sabia o que ocorreria, mas um susto
naquele que, mesmo ciente do que iria suceder, reserva-se ainda assim o direito
de enfrentar cada momento da vida como cada momento da vida, com seus temores,
sonhos e ambiguidades.
O dia seguinte é o dia no qual a religião
judaica – segundo a qual foi criado, na qual aprendeu a ler (porque naqueles
dias aprendia-se a ler nas escolas rabínicas, lendo a Torá, ou Escrituras),
sendo instruído desde a mais tenra infância – após o julgamento, o acusa de
herético, não recebe sua mensagem, rejeita sua proposta, considera-o demoníaco,
expurga-o.
O dia seguinte é o dia da negação, negação de
um dos melhores amigos, amigo que diante de uma situação pública afirma jamais
tê-lo conhecido, não ter com ele a menor relação, não guardar a lembrança de
nenhum encontro; não haver história entre eles, hipótese alguma de
cumplicidade. Amigo que declara: “Não sei quem é esse homem; jamais o vi, nunca
lhe ouvi o nome; tampouco andei com ele.” Amigo que nega a fraternidade, o
compromisso, a paixão e o sonho comum.
O dia seguinte seria dia de preterição, de
troca: “Que preferes, a Jesus, chamado Cristo, ou ao ladrão?”. Seria dia no
qual o poder público faria opção pelo corrupto, em vez do justo; pela
devassidão, e não pela integridade. Seria dia no qual os sistemas e a máquina
governamental, por questões
políticas, entregariam o inocente para ser condenado e libertariam – com todas
as condições de libertação e seus privilégios – o assassino.
Dia, pois, de ser trocado de maneira vil; de
ser escarnecido – soldados lhe poriam uma coroa de espinhos na cabeça para
brincar com a sua realeza (realeza, sim, mas de dor). Colocar-lhe-iam na mão um
caniço quebrável, como a dizer que o seu cetro é o cetro da fraqueza.
Vesti-lo-iam com um manto aparatoso, para significar que tipo de rei era ele:
rei-momo; rei-palhaço; rei do festival; debochariam dele expondo-o a cenas
ridículas. Para honrá-lo, cuspir-lhe-iam. A fim de declararem sua sapiência
profética, fechar-lhe-iam os olhos para lhe perguntar:
“Quem foi que te bateu?”. Sarcasmo, ironia.
O dia seguinte é o dia da cruz. Dia da
violação. Dia da profanação física. Dia da agressão. Dia de ser trespassado.
Dia de ser objeto.
O que você faria, se soubesse que os três
próximos dias da sua vida seriam dessa qualidade? O que você faria, se soubesse
que o que o aguarda é a depressão, a facada, a traição, o agravo, a perfídia, a
barganha, o julgamento, a exclusão da instituição, o desprezo, a rejeição, a
falta de solidariedade e ingratidão dos que se afirmavam amigos?
O que você faria se nos próximos dias você
perdesse o emprego, ou lhe roubassem a posição em favor do maior corrupto, de
pessoas mais convenientes àquela posição?
O que faria você, se amanhã fosse o dia do
escárnio, do desdém, da injúria, do descrédito, do enodoamento do seu nome, de
sua imagem e do seu caráter?
O que você faria, se amanhã, ao entrar no
táxi, fosse vítima de um ato sádico, um assalto pavoroso, um sequestro?
Ou fosse dia no qual seu marido chegasse
bêbado a casa, e tomado pelo machismo arrebentasse seu rosto, esmurrasse-a,
atirasse-a ao chão, enchendo-a de hematomas, ferindo-lhe os ouvidos com
palavrões e impropérios?
Tenho certeza de que não estou sendo irreal,
nem estou falando de coisas que não lhe digam respeito. Porque todos nós, de um
modo ou de outro, corremos sempre o risco de estarmos na iminência de sofrer
algo desse tipo.
Viver é correr o risco de tragédia. Estar
vivo é estar assistindo à possibilidade de conflito, traição, preterimento,
negação, fraude, injustiça, roubo, desonra, calúnia, violência, depressão .
Hoje, não sabemos o que nos pode acontecer
amanhã ou depois. Mas o Cristo ao qual me refiro conhecia o futuro – se bem que
não do ponto de vista de uma exacerbada onisciência, que lhe tirasse o direito
e o privilégio de rir e de chorar, de alegrar-se ou de sofrer a cada instante,
a ponto de a cada nova situação poder afirmar: “Eu já estava esperando que isso
acontecesse...”
Porque o paradoxo da onisciência de Jesus é
que ele sabe tudo, mas vive tudo o que lhe acontece como se ignorasse que lhe
ocorreria.
É o mistério que só se explica em Deus: saber
tudo, e, no entanto, viver tudo com a surpresa da chegada de cada coisa.
E qual a atitude de Jesus na véspera do tudo
mal? Na véspera do trágico? Na véspera do tudo-nada? Marcos conta, no cap. 14,
v.22 e 23 que, partindo o pão, ele disse: “Isto é o meu corpo”; e tomando o
cálice, acrescenta: “Isto é o meu sangue” – prova de que estava plenamente
consciente do que o aguardava. O v.26 diz mais: “Tendo cantado um hino, saíram
para o Monte das Oliveiras”.
O que esperava por Jesus era o ser ele
partido, rasgado, moído, ultrajado, usado.
No entanto, ele canta um hino! E que hino era
esse? Era justamente o hino que o judeu cantava na Páscoa, o Salmo 115, que
afirma o amparo de Deus; salmo que admoesta:
“Não confieis em ídolos. Têm boca e não
falam; têm olhos e não vêem; têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram.
Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta”.
Ele exorta a que se confie no Senhor, em quem
há amparo, refúgio, conforto, segurança.
Parece ironia cantar um hino desses à véspera
do que Cristo sabia ser a moenda da sua alma, o trilhar do seu corpo, o lacerar
e escalpelar da sua carne. Sim, Jesus foi neste planeta o único homem que soube
crer no que Paulo articularia teologicamente mais tarde:
“Sabemos que todas as coisas cooperam para o
bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu
propósito” (Rm 8:28).
Qualquer um só faz arremedar essa prática,
somente Jesus de Nazaré cantou antes da agonia; cantou louvores no gemido. E
diga-se: em Cristo, o cantar, antes de tudo, equivale a cantar depois. Porque
ele canta não antes da surpresa absoluta, mas sabendo o que está por vir. O que
significa terminar a cruz em louvor.
O que estará a vida fazendo em nós? Que
estará ela fazendo de nós? O que o chicotear, o deprimir, o esmagar, o
humilhar, o tripudecer, o caluniar, o escarnecer, o decepcionar, o
desacreditar, o roubar, o espatifar de ilusões estarão criando em nós? Será que
os gestos, jeitos, modos, palavras e tudo mais que a vida nos negou, não
estariam gerando em nosso ser uma alma desértica, um coração duro, frio,
incapaz do amor, da dádiva, da troca, do sossego e da paz?
Será que não teria arrancado de nós a
capacidade de sonhar, de crer, de renunciar e de ser grato? Ou ainda não teriam
criado em nós uma mente inepta, paralisada ao fervor e à adoração?
Será que os fatos e as ocorrências do dia
seguinte estão gerando em nós a idéia de que Deus tem o braço encolhido? Que
ele é um Deus impotente, inoperante e alienado; um Deus-ídolo?
Ou será que, por sua graça, seremos capazes
de enfrentar o que vier, chorando e gemendo com louvor,
com gratidão, na certeza de que aquilo que dói em nós, magoa e fere fundo;
aquilo que nos embaraça e tonteia pelo impacto; que nos surpreende, decepciona
e assusta, de maneira nenhuma revela e retrata a inoperância e pouco-caso de
Deus, que não traduz sua fuga ou omissão.
Ao contrário, espelha a certeza de que, por
trás do que se pode chamar bueiro da dor, espasmo da decepção, negrume da
solidão, haverá finalmente a estrada em direção ao único Pai – o único Amigo –
e à única vitória e certeza. Certeza que nos capacita a viver apesar do desamor
e abandono, da aflição da perda irrecuperável; apesar do nojo e horror do amigo
traiçoeiro e traidor, do tédio da eterna criatividade vestida de pavão e corpo
de gralha; enfim, apesar da tristeza de tanto que iria ser e nunca foi, ou
parece ser e não é – nem nunca será. Cristo canta a ressurreição. Ele canta a
intervenção, celebra a vitória antes dela.
Meu grande desejo é que, de alguma forma, o
Espírito do Senhor nos ajude a cantar um hino e sair... Sair para lutar!
Sair para batalhar pela felicidade, alegria e
independência a que temos direito. Sair, enfim, para viver a própria vida!
Faça a vida a careta que fizer, use contra
nós as armas que usar, empunhe em nossa direção as foices traiçoeiras e
devastadoras que quiser. Pois, apoiados ao muro da esperança, em Deus, iremos
de peito aberto contra todo choque e toda cilada, celebrando de antemão a
vitória, a interferência e o amparo do Todo-Poderoso, em meio à agonia. Saia
para glorificar o nome de Jesus, cantando antes, durante e depois.
OBSERVAÇÃO: O autor desse texto é Caio Fábio.
A transcrição desse lindo texto para este blog não implica dizer que concordo
totalmente com a maneira como Caio tem conduzido seu ministério atualmente.